Reciclando

Do ponto de vista criativo, sempre me intrigou a ideia do design gráfico como “obra única reproduzida em série”. Tal proposta revela a ambiguidade central do trabalho de criação gráfica, sua efemeridade, sua existência limitada por sua condição essencialmente utilitária, reprodutível e descartável. Por outro lado, ela funciona também como um termômetro permanente de seu tempo.

Projeto Reciclato


Cartazes:

Cliente: Suzano papel e celulose
São Paulo, 2000

Identidade +Studio


Envelopes e cartões de visita:

Cliente: Rico Lins +Studio
São Paulo, 2000

De algum modo, sempre esteve presente em parte de meu trabalho a apropriação de clichês visuais, seja reutilizando ícones da cultura de massa, seja extraindo referências de obras de artes plásticas ou pelo mero reaproveitamento de materiais impressos industrialmente. Das fotomontagens construtivistas de Rodchenko à banana pop de Andy Warhol, de Kurt Schwitters a Walt Disney, o universo visual contemporâneo é o da cultura de massa e seus produtos: recortes de revistas, tickets, dinheiro, embalagens, santinhos, rótulos, folhetos de cordel, bulas, formulários, propaganda, e a imensa produção de lixo decorrente. Em outras palavras, gerando a matéria-prima com que são produzidos os papéis reciclados.

Quando a indústria de papéis Suzano me convidou em 2000 a participar do evento de lançamento do papel Reciclato, minha proposta teve como eixo o tema “reciclagem”, abrangendo nesse conceito o processo de criação até os de impressão e utilização finais do papel. O ponto de partida foram trabalhos de minha autoria, nos quais me servira de imagens criadas por outros artistas, ou por mim mesmo, reutilizando-as posteriormente em diferente contexto. Na ocasião criei quatro trabalhos a partir da combinação de outros, alterando suas proporções e cores, recompondo seus detalhes, superpondo transparências e finalmente reutilizando os fotolitos para reimpressões com variadas cores especiais, vernizes e relevos, visando sua utilização na fabricação de embalagens falsas e outros volumes tridimensionais apresentados no evento.

Além das peças elaboradas para o lançamento do Reciclato, busquei também que essa proposta servisse como uma oportunidade para, ao estender a ideia de reciclagem ao processo criativo, aprofundar a reflexão sobre direitos autorais, reprodução digital, originalidade e outros temas centrais da comunicação contemporânea, que estavam — e permanecem — na ordem do dia. Tanto essas imagens como o papel onde estão impressas coexistem no mesmo refugo industrial. A reciclagem soma, divide, multiplica e subtrai, quer do ponto de vista de sua função social, econômica e ambiental, quer das estratégias de marketing. Através dos sinais dessa aritmética básica, vê-se o papel em seu estado bruto nas superfícies não impressas.

Algum tempo depois, a convite da revista Nervo Optico, registrei dois outros passos do mesmo processo. O primeiro, para dentro, cavando na genealogia autoral um tanto ou quanto acidental dessas imagens para recompô-las e revelar suas referências e origem. O segundo, para fora, mas não menos acidental, na medida em que esse inventário de referências — fossem elas casuais ou explícitas — fizessem eco a um modo de pensar e fazer design.

É natural, portanto, que essas reflexões se encontrem num recorte entre o autoral e o comercial, em que a pessoa física e a jurídica se deparam no espelho. É nesse espaço delimitado pela diversidade que a singularidadese revela: na identidade visual do Rico Lins +Studio e sua busca em integrar o aleatório e o sistemático, num gesto elástico que contém da previsibilidade de um cartão de visitas à imprevisibilidade randômica de um site em permanente construção.

A grande variedade de opções de peças gráficas resultantes do processo permitiu criar um sistema altamente renovável e durável, gerando impacto, curiosidade e empatia no público-alvo. Na época de sua produção, a reutilização de material gráfico foi inovadora como processo e atitude criativa, ao instigar reflexão sobre identidade visual e reaproveitamento de recursos. Todos os componentes foram produzidos de fragmentos dos cartazes originalmente criados para o lançamento dos papéis.

E, assim, propomos como alternativa aos que creem que nada mais se cria, a certeza de que tudo se transforma.