Texto de Rafael Cardoso para o catálogo da exposição Marginais Heróis em Recife.
“Qual a oportunidade que têm os que são, pela sua neurose autodestrutiva, levados a matar, ou roubar, etc., Pouca, ou seja, a sua vitalidade, a sua defesa interior, a sobrevivência que lhes resta, porque a sociedade mesmo, baseada em preconceitos, numa legislação caduca, minada em todos os sentidos pela máquina capitalista consumitiva, cria os seus ídolos anti-heróis como o animal a ser sacrificado. ”¹
HÉLIO OITICICA, “O HERÓI ANTI-HERÓI E O ANTI-HERÓI ANÔNIMO” (1968)
O dizer de Hélio Oiticica, que dá título ao presente texto, abre-se para leituras múltiplas. Ele advém de uma obra muito conhecida e reproduzida: um estandarte vermelho, serigrafado, que traz a imagem em alto contraste de um homem deitado de barriga para cima, disposta em diagonal, cabeça apontando para o canto inferior direito da composição, braços estirados para os lados, pés cruzados, presumivelmente morto. Abaixo, em letras de caixa baixa sem serifa, rudes e tortas, reminiscentes de uma espécie de Helvetica de botequim, aparece o dizer ‘seja marginal seja herói’, dividido em duas linhas, sem o emprego da vírgula. Trata-se de um os trabalhos mais conhecidos de Hélio Oiticica (abreviado HO, daqui para frente), cantado na prosa de jornalistas, esmiuçado nas reflexões de estudiosos, reproduzido em camisetas, homenagens e paródias. Mesmo assim – e é isso que mais intriga nessa obra – seu contexto de produção e recepção permanece relativamente obscuro, em se tratando do artista brasileiro mais comentado e citado das últimas décadas.
A começar por seu título, que às vezes é referido como Bandeira-poema, ou Bandeira, simplesmente; por outras, como ‘homenagem a Cara de Cavalo’. Circula largamente a versão que explica a obra como um protesto de HO contra a morte do bandido Cara de Cavalo, executado pela polícia em outubro de 1964. O artista realizou, de fato, tal homenagem ao seu amigo assassinado, porém em outra obra concluída em 1966, Bólide caixa no 18 – B33. O trabalho sob consideração aqui só veio a ser produzido alguns anos depois; e a figura retratada não é Cara de Cavalo – por admissão do próprio HO no texto citado em epígrafe – mas outro bandido de nome Alcir Figueira da Silva, o qual preferiu o suicídio ao se entregar à polícia. A obra teria ganhado divulgação ao figurar do cenário de famoso show na boate Sucata, do Rio de Janeiro, em outubro de 1968, no qual Caetano Veloso, Gilberto Gil e Os Mutantes deram prosseguimento à campanha, dita ‘tropicalista’, que culminou, pouco tempo depois, com a prisão e o exílio dos dois primeiros. Foi a partir desse momento que o mote ‘seja marginal seja herói’ entrou em evidência e passou, inclusive, a ser usado para denominar, no comum das vezes, o trabalho que lhe deu origem.
Os detalhes que cercam a criação dessa obra são tão incertos quanto o próprio letramento serigrafado, com direito a borrões e erros de espaçamento, intencionais ao que tudo indica. O que interessa, para a discussão presente, é justamente a instabilidade de leitura da peça, o quanto ela se abre para uma multiplicidade de significados que os linguistas e semióticos gostam de descrever como polissemia. Por um lado, a plena compreensão da frase só se dá com o conhecimento prévio do contexto referido acima: ou seja, a história da relação entre o artista HO e o bandido Cara de Cavalo, contra o pano de fundo da ditadura militar e a ascensão do esquadrão da morte. Por outro lado, a mensagem essencial é tão clara – tão gráfica, no sentido figurado da palavra – que qualquer um seria capaz de decifrá-la, dada a condição mínima de ler português.²
Que a maioria das pessoas chega a essa obra de HO com um misto de conhecimento e desconhecimento e, mesmo assim, consegue extrair dela (investir nela?) tantos significados diversos, é o ponto de partida para repensá-la no contexto atual.
O que significa quando Rico Lins, quase meio século depois do fato, retoma o mote de HO com o intuito de se apropriar de um legado histórico? Seria ingenuidade, quase canalhice, sugerir que seus cartazes dão continuidade, sob qualquer aspecto, ao protesto político contra a ditadura e a repressão que moveu HO. Tampouco se filiam às investigações sobre arte corporal, performance, penetrabilidade e espaço que o artista levava a cabo, por volta dessa época, com suas bandeiras, bólides e parangolés. Citar o dizer ‘seja marginal seja herói’ não insere Rico Lins como mais um herdeiro artístico de HO. (Ainda bem.) Ao mesmo tempo, não se trata de uma apropriação vazia ou superficial, um mero hommage, no gênero tão querido da geração ‘pós-moderna’ à qual Rico Lins pertence como artista gráfico/designer surgido nos anos 1980 para 1990. O diálogo ao qual se propõe é mais visceral e duradouro do que isso, desdobrando a própria fatura de HO em processo de reflexão crítica permanente. Para entender o apelo da frase para Rico Lins, faz-se necessário remontar à origem desse trabalho.
Tudo começou em 2005, quan-do Rico Lins foi convidado pela prefeitura da cidade de Chaumont, na França, para fazer a curadoria de uma exposição de cartazes brasileiros que acabou tomando corpo sob o título Brasil em cartaz / Le Brésil à l’affiche.³
Como parte integrante desse projeto, o artista se propôs a criar um cartaz para divulgar a exposição. Rico Lins achava-se muito envolvido a essa época com a Gráfica Fidalga, em São Paulo, uma das últimas remanescentes na cidade a praticar a impressão com tipos de madeira, técnica que desaparecia frente às transformações tecnológicas impostas pela digitalização. A partir de meados dos anos 1990, a transição dos meios analógicos para os digitais gerou um dilema para muitos designers: por um lado, o entusiasmo com os recursos libertadores da computação gráfica; por outro, um sentimento de perda de elementos de linguagem característicos dos processos antigos. Fazendo uso da maquinaria da Fidalga, Rico Lins realizava então experimentações em que misturava as possibilidades propiciadas pelas novas ferramentas às qualidades expressivas que mais valorizava na impressão tradicional. O resultado eram peças híbridas, muitas vezes introduzindo distorções e ruídos de modo proposital, com o intuito de realçar e explorar disjunções. Como a Bandeira, de HO, aliás. Foi em busca de um mote textual sobre o qual poderia se dedicar a tais experimentações que ele chegou – em conversa com o autor destas linhas – ao mote ‘seja marginal seja herói’.
O dizer de HO encontrou ressonância imediata na imaginação de Rico Lins. Em texto escrito para o catálogo da mostra de Chaumont, ele explica sua opção pessoal pelo cartaz como meio de expressão e discorre sobre seu potencial utópico de sintetizar uma mensagem e transmiti-la ao mundo com um misto de drama, informação e opinião. Referindo-se à década de 1960, em que passou a infância, Rico Lins escreve: “O cartaz torna-se uma ferramenta revolucionária num mundo em plena revolução.” A afirmação poderia ser aplicada, com bastante propriedade, à bandeira-poema de HO. Foi a partir dessa confluência de ideias, interesses e intenções que ele produziu o cartaz de divulgação da exposição Brasil em cartaz, um quase manifesto gráfico em que a frase de HO é deslocada de seu contexto originário e empurrada para uma discussão sobre arte e tecnologia, artesanal e digital, efêmero e permanente, que acaba por realimentar e reavivar algumas questões postas pela obra primeira – em especial, o complexo de ideias em torno das palavras marginal e marginalidade. Resgatar as linguagens e processos deixados à margem pelo avanço tecnológico seria, de algum modo, um ato heroico?
Em 2012, ao participar da exposição coletiva From the Margin to the Edge: Brazilian Art and Design in the 21st Century – realizada em Londres, na Somerset House, com curadoria do autor deste texto – Rico Lins voltou a abordar as questões que o encontro com a obra de HO haviam aberto em sua produção.⁴
Recorrendo mais uma vez à parceria com a Gráfica Fidalga, o artista criou uma série de cartazes produzidos por um processo híbrido de impressão tipográfica sobre digital. Por cima de retratos de heróis e/ou marginais retirados do seu próprio panteão imaginário, manipulados e impressos digitalmente, foi impressa por processo tipográfico a frase ‘seja marginal seja herói’. As máquinas foram entintadas e desreguladas de modo proposital para gerar distorções aleatórias, fazendo de cada cartaz uma peça única – uma espécie de monotipia mecânica. O resultado é uma malha vibrante de fotografias pixeladas e tinta borrada, palavra e imagem, sobreposição e composição. Cerca de noventa desses cartazes foram colados às paredes da galeria, cobrindo metade de uma sala, com o intuito de remeter ao processo de colagem de cartazes lambe-lambe, parte constituinte da cultura visual das metrópoles brasileiras. Posto que a prática de colar lambe-lambes continua a ser proibida e perseguida – absurdamente, diga-se de passagem – o gesto de trazer esse processo marginalizado para dentro de uma exposição em espaço nobre pretendia-se como homenagem aos esforços ‘heroicos’ de quem o mantém vivo. Não deixa de ser um eco distante do espírito de contestação que levou HO a querer introduzir passistas da Mangueira no MAM-RJ, em 1965. O museu barrou o ingresso daquilo e daqueles que considerava marginal. Àquela época, não havia espaço num projeto consagrado ao ‘moderno’ para acomodar o que ainda se entendia como um resquício do Brasil ‘arcaico’. Ficou a lição de que a arte não pode ser separada das questões sociais que cercam sua produção, principalmente no contexto brasileiro, onde a desigualdade social desponta eternamente como problema de fundo.
O diálogo entre a obra de Rico Lins e a frase de HO começa a ficar mais claro. Da tiragem de cartazes produzida na Gráfica Fidalga em 2012 – cada um, peça única – a maioria foi destruída pelo processo de sua exposição. O lambe-lambe, ao ser usado, é embebido de cola e fixado à parede de modo irreversível. Para retirá-lo, só rasgando e arrancando.
A montagem transforma-se em ação artística; a situação expositiva, numa instalação site-specific, impossível de ser repetida com a mesma configuração. O fato chama atenção para a natureza processual do trabalho, bem como para questões que giram em torno da relação entre valor de uso e valor de troca. Qual o sentido de um trabalho feito para ser destruído? No caso, o que configura a obra Seja marginal seja herói, de Rico Lins, não são os cartazes. Antes, posiciona-se como obra aberta – como ação, relação e sistema. Nesse sentido, vale a pena atentar para o aspecto multiplicador que é o desdobramento online do trabalho. Alguns dos cartazes traziam impressos códigos QR, os quais remetiam a dois vídeos detalhando os processos de produção – por um lado, das matrizes digitais e, por outro, da impressão tipográfica. Abria-se, assim, uma relação entre os objetos instalados no ambiente expositivo e os espaços que condicionaram sua feitura. Da galeria de Londres, o visitante podia acessar o contexto da fabricação em São Paulo. Na melhor das hipóteses, podia até obter subsídios para reproduzir ação análoga em ambiente diverso. Trata-se de uma subversão da ideia de ‘reprodutibilidade técnica’, famosamente analisada por Walter Benjamin. O cartaz não é mais a simples reprodução mecânica de uma matriz – até porque essas peças eram todas únicas – mas antes a matriz conceitual para a replicação de uma ação.
A partir de 2013, a obra entrou em nova fase. De maio a agosto deste ano, os cartazes ocuparam o Centro Metropolitano de Diseño, de Buenos Aires, sob o título Heróes marginales. Em junho e julho de 2013, baixaram rapidamente em Berlim, onde foram vistos no espaço experimental Nave Atelier, sob o título Marginal Heroes. A ação muda de caráter. Já não se trata mais de discutir a situação expositiva, ou questões de permanência ou reprodutibilidade, mas de criar inserções pontuais em que as poucas peças remanescentes da tiragem inicial são usadas para lembrar e divulgar o trabalho anterior. A ideia é manter viva a proposição e conquistar novos parceiros para a empreitada. Interessante reparar o trânsito internacional da obra – concebida entre França e Brasil, nascida entre São Paulo e Londres, engatinhando por Buenos Aires e Berlim. Em cada contexto expositivo, mudava a percepção dos heróis/marginais eleitos por Rico Lins para compor seu panteão. Se figuras populares da tevê brasileira como Chacrinha e Zé Bonitinho representavam pouco ou nada para um público estrangeiro, outras como Carmem Miranda ou Chapolim ganhavam nova compreensão. Em Berlim, a imagem de São Sebastião não evoca associações com o Rio de Janeiro, cidade da qual é padroeiro. Em compensação, a inclusão de Ronald Biggs é capaz de suscitar paixões violentas em Londres. O retrato de Chico Science, reconhecível como ícone global da música, atinge camadas mais profundas quando mostrada em Recife. Não por acaso, foi Recife a cidade escolhida por Rico Lins para divulgar essa obra no Brasil.
A presente exposição representa a abertura do trabalho para uma nova etapa. Ao trazer Seja marginal seja herói para o Brasil, Rico Lins volta a se debruçar sobre as questões gráficas e tecnológicas que embasam o processo de feitura da obra. A relação entre analógico e digital, tradição e inovação, cai sobre o terreno fértil da cidade que viu nascer, nos idos de 1993 a 1994, “Rios, pontes e overdrives” e “Computadores fazem arte”, entre outras canções voltadas para os desafios éticos/estéticos da era digital então nascente. Em linha com a estratégia retórica de Chico Science de fundir primórdios (lama) com paroxismo (caos), Rico Lins foi buscar na vibrante cultura visual da cidade parceiros à altura da empreitada. Convidou o antológico gravador e cordelista J. Borges para a mesa de diálogo, representando a riqueza da tradição gráfica pernambucana. As matrizes desse artista remetem à fonte inesgotável do processo de criação visual. Visando a abertura para a experimentação, convocou o designer recifense H.D. Mabuse, legítimo representante das visualidades do movimento mangue, para transpor para o meio digital a mesma lógica adotada na produção dos cartazes tipográficos. O aplicativo criado por Mabuse gera imagens digitais a partir de ruídos e defeitos (glitches) introduzidos pela interferência do texto e ampliados de modo intencional. Essa abertura para parcerias diversas opera como um convite para que o espectador se torne também participante e passe a contribuir suas próprias interferências ao trabalho coletivo.
‘Faça você mesmo’, reza o lema que rege toda uma tradição estendendo desde os proponentes da construção própria e bricolagem doméstica (o do-it-yourself, ou DIY) até alguns hackers da atualidade, passando por Dada, Pop Art, Punk Rock e, claro, o artivismo de um HO. Fica o convite. Seja criativo. Seja experimental. Seja marginal seja herói. Seja o que for, mas não deixe de participar. Se a “máquina capitalista consumitiva”, nas palavras de HO, só nos oferece ídolos para serem sacrificados, então devemos reagir gerando ruídos, interferências e subversões capazes de se contrapor à lógica dominante do consumo/sacrifício. De início, pode parecer pouco. As matrizes são frágeis. Os processos a nosso dispor são, muitas vezes, precários. Porém, a precariedade tem lá sua força e a multiplicação ilimitada da ação mais efêmera pode gerar resultados imprevistos. Todos às oficinas! O manifesto da revolução não será impresso sobre papel couché. Será colado nas paredes e postado em corações e mentes.
RAFAEL CARDOSO,
ESCRITOR E HISTORIADOR DA ARTE.
¹ O texto é reproduzido na revista Sopro, n.45 (2011), disponibilizado em: http://www.culturaebarbarie.org/sopro/arquivo/heroioiticica.html. O original, datilografado, de HO foi digitalizado e disponibilizado em: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/ho/index.cfm?fuseaction=documentos&cod=145&tipo=2.
² O adjetivo ‘gráfico’ pode sugerir que algo é ‘explícito’. Esse sentido é mais comum em língua inglesa, onde o termo graphic violence, por exemplo, é usado até para estampar avisos aos pais em filmes comercializados.
³ O catálogo dessa mostra está disponibilizado em: http://www.ricolins.com/projetos/brasil-em-cartaz.
⁴ Informações sobre essa exposição e partes do catálogo estão disponibilizados em: http://cargocollective.com/ana-costa/from-the-margin-to-the-edge-catalogo e http://www.tecnopop.com.br/from-the-margin-to-the-edge-catalogo/ e ainda http://www.automatica.art.br/?page=3.